Entre pagãos e hereges : conflitos de identidade na formação da igreja cristã a partir dos escritos de Lactâncio e Jerônimo (séculos IV e V)

Abstract

RESUMO: No âmbito dos estudos culturais que sucederam a chamada ‘virada linguística’ do final dos anos 70, responsável por chamar a atenção de cientistas sociais e historiadores para o aspecto simbólico das práticas sociais, este trabalho visa demostrar como a narrativa escrita serviu de instrumento para a construção e institucionalização de modelos de pertencimento no cenário de disputas por poder e influência, que opôs cristãos e defensores dos cultos tradicionais no início do século IV, bem como lideranças religiosas no interior das igrejas no período subsequente. Em um primeiro momento, analisamos a defesa de Lactâncio à divindade de Cristo a partir do estudo de suas Divinae Insitutiones. Vivenciando os anos de perseguição aos cristãos, que terminariam com o Édito de Galério em 311, o retórico redige sua apologia em resposta a dois dos principais críticos de sua época: o filósofo neoplatônico Porfírio de Tiro e o aristocrata romano, que chegou a ser governador da Bitínia, Sossiano Hiérocles. Em seus escritos os dois não apenas questionavam o fundamento central da fé cristã, como consideravam os adeptos do Evangelho inimigos do Estado. Lactâncio atribui as dificuldades do império à idolatria e intolerância em relação aos cristãos, alegando que somente a conversão ao cristianismo seria capaz de garantir a sobrevivência de Roma. Com base nisso, sustentamos que seu esforço para demonstrar a legitimidade do monoteísmo cristão fazia parte de um objetivo maior, que era forjar uma nova identidade religiosa para o Império Romano. Em segundo lugar, exploramos a polêmica em torno do casamento e da castidade, envolvendo Jerônimo e o monge Joviniano. Resgatando o histórico da discussão na teologia cristã, observamos que desde o primeiro século, havia aqueles que defendiam a paridade entre ambas as práticas e os que professavam a superioridade do celibato em termos de santidade. Para estes últimos, o casamento deveria ser encarado como uma concessão e não um ideal a ser buscado, de modo que seu principal objetivo seria evitar o pecado da fornicação. Representando uma parcela de crentes favoráveis a instituição matrimonial, Joviniano pregará a sacralidade da união entre homem e mulher, dissociando-o do pecado original. Ele também apregoava a similitude entre os fiéis batizados, os quais receberiam a mesma recompensa: o reino dos céus. Tais ideias o levaram a ser anatematizado nos Concílios de Roma e Milão em 393. Na mesma época, Jerônimo escreve o tratado Adversus Iovinianum, acusando o monge de heresia e refutando seus argumentos. A ausência de referências aos eventos transcorridos sugere que o teólogo não tivesse conhecimento deles. Sua intenção era sobrepor o entendimento que possuía a outros existentes no período, requisitando para si a autoridade de fixar os limites da ortodoxia no tocante à prática da continência

ABSTRACT: In the context of cultural studies that followed the so-called 'linguistic turn' of the late 1970s, responsible for drawing the attention of social scientists and historians to the symbolic aspect of social practices, this work aims to demonstrate how written narrative served as an instrument for construction and institutionalization of models of belonging in the scenario of disputes for power and influence, which pitted Christians and defenders of traditional cults at the beginning of the fourth century, as well as religious leaders within the churches in the subsequent period. At first, we analyze Lactantiu's defense of the divinity of Christ from the study of his Divinae Insitutiones. Experiencing the years of persecution of Christians, which ended with the Edict of Galerius in 311, the rhetorician writes his apology in response to two of the main critics of his time : the Neoplatonic philosopher Porphyry of Tire and the Roman aristocrat, who became governor of Bithynia, Sossianus Hierocles. In their writings the two not only questioned the central foundation of the Christian faith they considered the adherents of the Gospel to be enemies of the state. Lactantius attributes the difficulties of the empire to idolatry and intolerance towards Christians, claiming that only conversion to Christianity would be able to guarantee the survival of Rome. Based on this, we maintain that his effort to demonstrate the legitimacy of Christian monotheism was part of a larger objective, which was to forge a new religious identity for the Roman Empire. Second, we explore the controversy surrounding marriage and chastity, involving Jerome and the monk Jovinian. Recovering the history of the discussion in Christian theology, we observe that since the first century, there were those who defended the parity between both practices and those who professed the superiority of celibacy in terms of sanctity. For the latter, marriage should be seen as a concession and not an ideal to be pursued, so its main objective would be to avoid the sin of fornication. Representing a portion of believers in favor of the institution of marriage, Jovinian preaches the sacredness of the union between man and woman, dissociating it from original sin. He also touted the similarity among the baptized faithful, who would receive the same reward: the kingdom of heaven. Such ideas led him to be anathematized at the Councils of Rome and Milan in 393. At the same time, Jerome wrote the treatise Adversus Iovinianum, accusing the monk of heresy and refuting his arguments. The absence of references to past events suggests that the theologian was not aware of them. His intention in composing the apology, as we have shown, was to superimpose his understanding on others existing in the period, claiming for himself the authority to set the limits of orthodoxy with regard to the practice of continence