Heterologias : um estudo do organizar, resistir e fabular em duas comunidades remanescentes de quilombos do Estado do Paraná

Abstract

Resumo: O objetivo geral nessa tese foi coproduzir uma heterologia com duas comunidades remanescentes de quilombolas no Estado do Paraná. Para tanto, foi necessário percorrer os caminhos históricos do conceito de kilombo desde África até as comunidades remanescentes de quilombos no Brasil. Com isso, pude perceber que cada vertente político-epistemológica procurou "representar" o quilombo de acordo com seu tempo, seus interesses e ideologias de sua época: por vezes considerando-o como um fenômeno "contra-aculturativo", ora como um centro de resistência ao contexto colonial escravista, ora como projeto de nação. Tais interpretações se espraiam até os dias atuais para as Comunidades Remanescentes de Quilombos em nosso país. Neste sentido, pude perceber que se tornou comum "inventar o Outro", como um reflexo de si. Isso exigiu um entendimento mais abrangente sobre as dimensões ético-político-epistemológicas da relação entre os Outros e o Mesmo. Por meio da filosofia, apresentamos que a representação dos Outros é nada mais que uma imagem fixa construída. No entanto, um texto precisa ser construído, a experiência precisa ser colocada neste estático papel que irá preencher os espaços físicos e virtuais de alguma biblioteca. Portanto, retomamos nossa aparente problemática. Como realizar uma escrita antirrepresentacional? Como o discurso abre um espaço para o que ele fala? Ou, ao menos, é alterado por ele? Como ele, por sua vez, é marcado pelo que procura apresentar/produzir? Recorri à obra de Michel de Certeau, a partir do que ele convencionou chamar de Heterologia, e aqui defendo o uso do conceito como modo alternativo de pensar os Outros. O estatuto do trabalho da escrita heterológica é, então, fazer aparecer a alteridade alterante e produzir essa diferença constitutiva a partir da inacessibilidade dos Outros, que ao mesmo tempo é sua condição de possibilidade, tornando a escrita apenas ferramenta conceitual que manifesta sua ausência. Assumir o ausente como condição de possibilidades afirmativas, é produzir também um novo logos que expande a fronteira dos discursos e dos saberes. Em resumo, tentei mostrar que a heterologia é, desse modo, logos dos outros. É conceber a alteridade para além da representação de uma exterioridade nunca alcançada, mas sim como condição fundante da produção de um futuro, de algo totalmente novo. Essa é a ambivalência da heterologia, a condição de um fazer e a denegação de uma ausência, age ora como um discurso de uma lei, ora como álibi, oscila entre fazer história e contar histórias, sem ser redutível nem a uma nem a outra. A partir disso, direcionei minha prática heterológica e meu olhar para coproduzir esse saber heterológico com duas comunidades remanescentes de quilombos no Paraná. A partir de inserções que duraram cerca de um ano, vivenciei momentos de organização e resistência quilombola frente às violências impostas pelos mecanismos institucionais, pelos vizinhos e pelo olhar homogeneizante de pesquisadores. Como conclusão, percebi que é que somente a partir do questionamento "de que modo se vive o quilombo" é que se pode evitar objetivá-lo. Somente perguntando "como se vive" é que podemos evitar a questão redutora de "o que é o quilombo". Enquanto persistirmos em examinar os Outros nos termos do que "é", continuaremos a objetivá-los, representá-los sob o escrutínio de nossa razão. Deste modo, se não podemos pensar como os quilombolas, sequer pensar sobre os quilombolas, no máximo conseguiremos pensar com eles

Abstract: The overall aim of this thesis was to co-produce a heterology with two remaining quilombo communities in the state of Paraná. Considering that, it was necessary to follow the historical paths of the kilombo concept from Africa to the remaining quilombo communities in Brazil. As a result, I was able to see that each political-epistemological strand sought to "represent" the quilombo according to its time, its interests, and the ideologies of its era: sometimes considering it as a "counter-cultural" phenomenon, sometimes as a center of resistance to the colonial slave context, sometimes as a nation project. These interpretations still apply to the Remnant Communities of Quilombos in our country today. In this sense, I could see that it has become common to "invent the Other" as a reflection of oneself. This required a more comprehensive understanding of the ethical-political-epistemological dimensions of the relationship between the Other and the Same. Through philosophy, we have shown that the representation of the Other is nothing more than a constructed fixed image. However, a text needs to be constructed, the experience needs to be placed on this static piece of paper that will fill the physical and virtual spaces of some library. So, we return to our apparent problem. How can we carry out anti-representational writing? How does discourse open a space for what it speaks? Or, at least, is it altered by it? How is it, in turn, marked by what it seeks to present/produce? I turned to the work of Michel de Certeau, based on what he conventionally called Heterology, and here I defend the use of the concept as an alternative way of thinking about the Other. The status of the work of heterological writing, then, is to make altering alterity appear and produce this constitutive difference based on the inaccessibility of the Other, which at the same time is its condition of possibility, making writing just a conceptual tool that manifests its absence. To assume the absent as a condition for affirmative possibilities is also to produce a new logos that expands the frontier of discourses and knowledge. In short, I've tried to show that heterology is thus the logos of the other. It is to conceive of alterity beyond the representation of an exteriority that has never been reached, but rather as the founding condition to produce a future, of something totally new. This is the ambivalence of heterology, the condition of a doing and the denial of an absence, it acts sometimes as a discourse of a law, sometimes as an alibi, it oscillates between making history and telling stories, without being reducible to either one or the other. I directed my heterological practice and my gaze towards co-producing this heterological knowledge with two quilombo communities in Paraná. Through insertions lasting about a year, I experienced moments of quilombola organization and resistance in the face of the violence imposed by institutional mechanisms, by neighbors and by the homogenizing gaze of researchers. In conclusion, I realized that it is only by asking "how do you live the quilombo" that you can avoid objectifying it. Only by asking "how people live" can we avoid the reductive question of "what is the quilombo". If we persist in examining the Other in terms of what it "is", we will continue to objectify it, to represent it under the scrutiny of our reason. In this way, if we can't think like the quilombolas, or even think about the quilombolas, at most we'll be able to think with them